domingo, 23 de outubro de 2016

Parapeito (Top of The City)

Era o parapeito mais alto da cidade. Madeira laqueada, alumínio e concreto arranjados matematicamente sob as solas rachadas de seus pés. Mais do que a arquitetura, seus pés liam a altitude torreante acima dos outros prédios, solidez, um porto seguro.

E sufocamento.

Abaixo, a cidade desenhada em incalculáveis contas com brilho de vários Watts em cada uma. Os paetês elétricos entremeados por sulcos cinzentos gritando alto no silência absoluto da madrugada - quantos vinis ele ouvira que não tinham sulcos ensurdecedores como esses - faziam rica costura até onde os olhos podiam enxergar.

E nada.

Uma dança espasmódica dos dedos dos pés contra a esquadria foi a única reação ao nihil, embora multicolorido, que olhos e boca processavam do parapeito. Sombrancelhas franziram tentando fazer sentido da desordem sensorial da vista e do ventoque soprava impessoal da altura que estavam. Mas nunca lera Nietzsche. Lera bem menos do mundo do que deixava entender.

Olhou pros pés descalços e as unhas quebradas por acasos pontuais - uns de trabalho, outros da vida - e tentou lembrar a razão de ter vindo ao parapeito. Uma fita longa de perguntas que puxavam umas as outras seguiram, e logo vieram olhos espremidos e têmporas massageadas para trazer novamente foco e mente livre.

E aerodinâmica.

Era o sentido que desenvolvera, o sentimento que permeava. Aerodinâmica apitava forte na corrente de ar e atenuava o borborigmo da incerteza. Um momento de reflexão com flashes das carteiras de cigarro na escrivaninha e as desculpas tecidas para justificar o hábito. Um momento de saudade cheirando a incenso e luz negra. Um aperto na garganta ao imaginar os dedos eternamente laboriosos em representar qualquer que seja a versão mensurada da realidade que se tornaria a prelazia de sua vida.

E então veio a serenidade de quem não tem opções justamente por ter opções em demasia.

E então veio o passo dado no vácuo.

terça-feira, 13 de março de 2012

Carta ao que me foge

este texto demanda que se ouça duas músicas durante a leitura: "Ne t'en fuis pas" da Kate Bush (vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=ld0K91RkaTE) e "Somebody That I Used To Know" do Gotye (vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=8UVNT4wvIGY)

Gostaria de dedicar esta pequena carta que nunca foi endereçada ao seu destinatário à minha amadíssima esposa-por-assim-dizer R. Dachery, e ao real destinatário dela, que há de saber quem é, quando lê-la.

Te escrevo não sei com que rosto, já que pelo visto ao menos pra ti não tenho mais feições a reconhecer. Só sei que te escrevo com os dedos apertando trêmulos as teclas da velha máquina de escrever; trêmulos de tanta coisa, que teria de te escrever outra carta apenas pra contar os vetores que eles descrevem.

Te dei meu dezembro, te fiz meu janeiro à moda, e parte do meu fevereiro cavalgaste à gosto; venerei o mais simples sissiar dos teus pulmões, carreguei tuas lágrimas em meu ombro com um tenro orgulho tê-las me confiado, senti o peso da tua presença sobre mim, e sorri. Até o gosto malcriado dos teus cigarros eu apreciei, até a presença sufocante da tua hombridade eu trouxe pra entre meus lábios. E tu me tiras a cor de minha carne e a forma de meus ossos, com os novos óculos que carregas escudando as faces, ou simplesmente com esse gelado que resolveste carregar por detrás dos teus olhos.

O que se passou desde o beijo? desde as lágrimas? desde os olhares trocados entre vergonha e admiração? desde que o assim-dito Príncipe das Trevas selou o que eu acreditava longevo, esperava eterno, e nutria íntimo?

Nada mais disso conta, ou estou eu sendo apenas punido por ter semeado em mim mais do que minha Deméter pessoal permite que eu cultive?

Te escrevo agora com uma diminuta xícara branca fumegando a bebida que elegemos como o ponto alto de nossos encontros, e ouço vozes cantando no fundo dos meus ouvidos. As duas me cantam cada uma sua lira, e cada uma busca de mim descortinar lágrimas - lágrimas que prometi não verter, prometi ser forte por nós dois, custasse-me o que fosse - e cada uma me canta uma parte do que sinto.

Ele me canta o que sinto, de como tu te afastaste do nada, me negando além do amor que (ao visto) não posso ter, a sua simples presença. Me canta como tão erradamente me tratas como se o que ocorreu não fosse nada, como se não contasse o tempo que dediquei-te em uma bandeja de prata. como agora tu ages como se fosses apenas "alguém que eu costumava conhecer".

Ela me canta a minha súplica, canta o que te peço, com meus joelhos contra o chão frio à sua sombra. Não sede gato arredio, não me vás, não só porque os olhos gigantescos de um Deus me impedem te tomar-te pra mim à força.

Eu te peço, te suplico, não me fujas

Je t'en prie
Je t'en prie
Je t'en prie

Ne T'enfuis pas!

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Saudade

Eles dois - Luiza e Marcos, amigos de anos e anos, quando a coisa começa a esfriar e a intimidade borra as linhas que individualizam um ao outro - estavam num café qualquer, sem nome, tomando cada um uma xícara fumegante. Faziam-no ao menos uma vez por mês, para garantir que a rotina corrida de dois "adultos educados assalariados com vidas complicadas pra lidar" não os afastasse completamente. Luiza tomava a sua lentamente e meio desajeitada - não queria borrar seu batom carmim vivo contra o branco reluzente da xícara - e olhava para Marcos intrigada. Ele tomava sua xícara cabisbaixo, silencioso, acinzentado; remexia o pouco café que havia pingado no pires, tentando desenhar com ele.

"Aconteceu alguma coisa?" perguntou Luiza, após um silêncio pontuado por um pequeno grunhido saido de sua boca pequenina de lábios em brasa, que estavam retorcidos numa análise do que ela via alí. Olhava para ele por cima dos óculos pequeninos e ovalados que corrigiam sua vista e diminuiam seus amplos olhos cor de céu nublado.

"Lembra de quando fomos para Curitiba, e visitamos os sebos da República Argentina?" disse, um olho nela, um olho no garabato que fazia no pires.

"Claro que lembro!" ela disse, surpresa por trazer uma memória tão específica assim, do nada. "lembro que gastamos até o nosso último centavo comprando livros e cds. você completou sua coleção do Oasis, eu te comprei um dos cds do Arctic Monkeys" ela suspirou. "Era inverno, e tinha uma araucária soltando pinhas aos montes na vista da nossa janela".

"Então, ontem tomei meu dia e comecei a mexer na minha coleção de cds, e achei aquele cd dos 'macacos'. Pus pra tocar, e me embalei a ver as minhas coisas". Um gole profundo, acompanhado do som sissiante de esvaziar os pulmões com um peso no peito "Achei tanta coisa que a gente trocou esse tempo todo..."

"E?" havia curiosidade e confusão olhando por trás dos pequenos óculos ovalados, que preferiam encará-lo que examinar as cunhas cor de sangue impressas contra a xícara.

"E hoje acordei sentindo uma dessas nostalgias que envolvem a pessoa como um cobertor de vento gelado, como aquele Minuano que a gente pegou na última noite em Curitiba". Ele levantou ambos os olhos cor de terra preta, e ela viu neles o brilho peculiar dos olhos marejados de água. "Quantos anos rolaram desde que nos conhecemos?".

"Fazem quase vinte anos, a gente se encontrou pela primeira vez no colégio ainda" Luiza olhou no fundo daqueles olhos que cintilavam reflexos das lâmpadas fluorescentes. Em seu peito, ela sentia esborrar a mais quente e avassaladora ternura que um humano podia sentir pelo outro.

"E a gente trocava bilhetinhos por debaixo da porta, pelo corredor" Ela assentiu silente, com um aceno de cabeça. Ele tirou do bolso um papel branco com pautas cor-de-rosa, muito roto e amassado, que parecia ter estado à mercê do esquecimento por anos a fio, e passou-o de mão cheia para a mão dela.

Ela logo reconheceu nele a sua caligrafia de colegial. Era senão o primeiro bilhete que ela tinha deixado para ele, onde se lia "nunca vou me perdoar se deixar você escapar de mim".

Levantou o olhar do bilhete, e encararam profundamente um ao outro, as lágrimas irrompendo silentes em meio ao abraço que se fazia entre os dois.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Maresia

Como se não houvesse mais nada para perder em sua vida, seu amante lhe escapara dos dedos como fumaça, e a deixara totalmente sozinha no mundo.O modo como as Omoplatas dele se moviam debaixo da mescla de algodão e poliéster no seu calmo passo para longe foi talvez um pouco demais para seus nervos.

Ela se via agora no meio de um mar de xícaras de café abandonadas pelo meio, com as bordas pintadas pelo seu batom borrado e salpicadas com a cinzas da profusão de cigarros vagabundos que ela fumara para diminuir o passo sincopado que a cafeína impunha ao seu coração.

Olhou pela janela meio encoberta pela cortina: chovia torrencialmente, e ela achou isso muito conveniente para a situação. Nada combina mais com a completa desolação de quem nada mais tem do que a chuva lavando tudo para longe, além do mais ela gostava do ar úmido. Cheirou seus lençóis, sentiu cheiro de maresia, para ela parecia cheiro de saudade. Saudade que os relâmpagos lá fora entrecortavam com seu clarão de quando em vez, a única claridade que ela vira em dias e que refulgira no mar de mais de cem xícaras de China branca que se espalhavam por todo o quarto, tal qual um campo de tulipas.

Ela continuou segurando o lençol cobrindo o nariz, bem rente aos olhos, as unhas azul-português descascadas constrastando ao tom de cinza do tecido envelhecido. Chorar? pra chorar tem de se sentir algo, e ela tinha a certeza de que quer que ela tivesse dentro dela estava esturricado e retorcido; apenas continuou aspirando o cheiro de brisa e alga marinha que misteriosamente apareceu em sua cama.

"Ele velejava" ela lembrou, e o mar dentro dela finalmente gotejou. Ela queria que ele navegasse seu vasto oceano, mas ele preferia o Pacífico Sul, e ela ficou perdida entre as vagas que rebentavam dentro dela e o lago plácido das xícaras que a cercava.

E deitou-se, deixou-se afogar pelos lençóis marinhos que a cercavam, uma xícara que estava aos seus pés deslizou e estourou no chão, mas ninguém a ouviu - reboara um trovão lá fora - ninguém a ouviria também, entre as vagas de um Oceano salgado que começara a irromper.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Anos de Silêncio

Naquela cidade não se falava havia muitos anos, a última palavra proferida soara há tantos anos que ninguém tinha idéia de quando foi. Só se sabia que um belo dia, todos amanheceram calados e se mantiveram em seu silêncio monástico.

As próprias pessoas eram a encarnação do silêncio: andavam cabisbaixas, os ombros encurvados e pendendo para frente, numa fisionomia que parecia o misto de medo e desânimo. De tanto silêncio, até sua carne tinha mudado para um tom acinzentado por cima do branco rosado de antes, até os cabelos saíram do louro para a cor de algodão sujo.

Eis que um dia chegou um forasteiro àquela cidade onde até o cascalho parecia ter medo de ressoar debaixo dos pés do povoado. Trajava negro, e carregava uma caixa firmemente agarrada em seus dedos longos.

Parou no meio da avenida central num dia em que por mais que estivesse claro, o céu parecia negro. A rua estava deserta, mas pouco a pouco uma tímida e amedrontada plateia se formou ao redor do homem que não esboçava uma expressão sequer, apenas segurava firmemente a caixa com suas mãos cadavéricas.

Seus olhos então se abriram e ele analisou demoradamente a multidão que o cercava, cheia de olhares urgentes e mãos se apertando umas nas outras. Julgou-os de algum modo satisfatórios ou merecedores, e então ofereceu-lhes a caixa, com um sorriso indecifrável no rosto.

Os olhares contritos de outrora toranaram-se arregalados de espanto, e uma curiosidade mordaz palpitava em seus corações, debatendo-se contra as costelas.

Um deles ousou então dar um passo à frente, em direção á oferta do forasteiro. - se era jovem ou velho, não se sabe dizer, todos portavam a mesma feição de rocha fria e silente. - A caixa então foi solenemente passada para suas mãos, para o gozo do forasteiro que entrelaçava os dedos e expandia o ilegível sorriso.

As mãos que seguravam a caixa hesitaram no botão que liberava sua tampa, até que pressionaram-no, e um clique metálico soou. A pequena multidão se encolheu sobre sí mesma enquanto a dobradiça deslizava levantando a tampa.

Todos os olhares intrigados mergulharam em direção à esfera de luz e cor que havia dentro da caixa, e todos sentiram uma curiosidade ainda maior sobre o que o forasteiro trouxera.

Mas o forasteiro desaparecera quando os olhares se levantaram para procurá-lo.

Os mesmos dedos que pressionaram o botão seguraram a esfera de luz e abandonaram a caixa vazia no chão. Todos os olhos agora a fitavam com desejo, fascínio, medo, e outras emoções que não cabem nas palavras.

De repente, uma pluma de éter e vapor se desprende da esfera, e meneia preguiçosamente até próximo do rosto do intrépido portador da esfera. Sua boca escancarada de espanto torna-se o berço da nuvem que caminhara pelo ar, e que garganta adentro se precipitou.

E um gorgolejo, um balbuciar humano se projetou para fora dela.

O espanto foi geral, a multidão se retrai para longe enquanto o portador da esfera a examinava intrigado, e instintivamente balbuciava novamente, descoordenado.

Mil sentimentos brotaram das espantadas almas dos que viam a cena. Olhares confusos foram trocados tentando entender o que se passava, enquanto o balbuciador exclamava, agora em júbilo.

Quantas gerações haviam surgido e sumido sem escutar esse som, que agora ouviam ecoando entre as casas? Ninguém sabia, nem poderiam pensar, suas mentes estavam embotadas com um único pensamento:

"Eu tenho de pegá-la parar mim!"

O balbuciador logo se pegara cercado por um mar de olhos famintos, e lentamente desceu o braço da esfera junto para sí. Foi interceptado por uma mão que cerrou-se sobre seu pulso, puxando-o para longe. Mãos oportunistas agarraram os dedos da esfera, cravando as unhas na carne, bocas cobiçosas mordiam braços entrelaçados para obrigá-los a cederem, tentando abrir caminho em direção à bolinha de luz na ponta de dois finos dedos.

Logo a multidão se tornara um emaranhado enrubescido pelos talhos que dentes, unhas e punhos rasgavam uns nos outros. enquanto isso, o forasteiro conservava o mesmo sorriso imenso e enigmático, acenando tchau para a cidade onde disseminara tão curiosa situação.

Ninguém notou que suas pegadas não tinham calcanhar

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sprawl

Augusto era um típico retrato do adolescente decadente da classe média. Era vazio de grandes ambições e realizações, indiferente ao que lhe ocorria ao entorno, com um mundo focado no seu próprio umbigo e uma força vital destinada apenas a satisfazer seus desejos rasos de garoto mimado na puberdade. Vazio de emoções e infértil para as artes e engenhos humanos, ele apenas existia no mundo, misturando-se ao mar cinzento de tédio e morosidade do mundo.

Vivera até a fatídica data em torno de dezoito anos de vidinha boba, preocupada com garantir companhia de Shopping no final de semana e com baladas calibradas a preço de qualquer psicotrópico que houvesse por perto. Foi então numa dessas que lhe acometeu uma revolta oca à sua rotina monótona de filhinho-de-papai.

Saíra então, furioso e gritando "Isso tudo é uma puta merda!", empurrando as pessoas no caminho para fora do prédio onde a música alta e os neons piscantes abafavam as percepções de todos. seus amigos-pelegos, de personalidade ainda mais diminuta que a de Augusto, que lhes era mais do que amigo, algo mais para um líder e senhor soberano, seguiram-no rapidamente, repetindo a grosseria de ombrar e empurrar todos no caminho, encontrando-se todos então na calçada, madrugada deserta, com Augusto entupindo-se de coca, tanto cola quanto ína.

Os olhos de Augusto caçavam vorazmente pela rua vazia algo que pudesse saciar a sede de emoção e turbulência que ele tanto ansiava para curar-se momentaneamente do tédio burro de sua vida. Até que seus olhos caíram sobre um rapazinho magro, um pobre coitado voltando de seu trabalho que se arrastava madrugada adentro.

Poucos passos foram precisos para que o bando tivesse cercado o rapazinho com todas as más intenções e sorrisos diabólicos possíveis. Estavam em quatro animalotes treinados em academia contra um diáfano rapaz que tremia na expectativa do seu desfecho.

O punho fechado de Augusto foi o primeiro a voar, indo de encontro ao nariz do rapazinho, que jorrou sangue e foi amparado com as mãos em meio a um urro de dor. Todos os quatro então fizeram chover pancadas nele, que rapidamente caiu de joelhos, e logo estava estirado no chão.

Mas Augusto ainda não se deu por feliz com a adrenalina da violência, e tomou o rapazinho apenas para si, esmurrando-o até que não se ouvisse mais seus gemidos de dor. Soco a soco, ele arrancou cada gota de sangue que pode da vítima, até que ele fosse um saco de pele inerte, coberto de hematomas, e sem vida.

Todos fugiram de imediato ao perceberem o que houve, largando Augusto pra trás, sozinho com o defunto que produzira. Imediatamente, a chapação da droga passou, deixando-o terrivelmente sóbrio, sóbrio demais para aguentar cair na real do que ele acabara de fazer.

Com os olhos arregalados, Augusto olhou suas mãos que tremiam de tensão, e as viu vermelhas, como que com uma luva, com o sangue do finado rapaz. E ele enxergou nessas manchas a mugre, o encardume e toda a carepa da vida ridícula e vazia que levava; tão podre de vícios, tão carregada de tolices, e agora coroada com um crime hediondo: uma vida tomada por mero capricho.

Correu. Suava frio, tinha ânsias de vomitar, tinha ganas de chorar do pânico burro que lhe brotava ao tentar processar o que fizera em sua cabeça e suas consequências. Chegando em casa, trancou-se no quarto, contendo os soluços desesperados que surgiam.

Foi então que ouviu as vozes que cantavam em seus headphones, fazendo uma cama sonora pra sua vida fútil. Pareceram-lhe vozes de Santos, anunciando-lhe uma redenção em meio ao seu desespero, e pôs-se a construir o caminho de sua redenção, no silêncio absoluto garantido pelas pílulas pra dormir de seus pais.

Teve então o seu pecado-mor de nascença perdoado pela santa Cruz, embora seus pregos fossem de lençóis amarrados aos pulsos. Entre as montanhas de concreto e vidro que se estendiam além das montanhas, teve seu Santo Repouso longe rat race que seria retomada ao nascer do sol.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Casa

A figura diminuta do rapazinho andava destoante do resto da paisagem. Ele andava pelo meio de uma clara passagem de pedra serpeante no meio de árvores frondosas e espaçadas, que a despeito do céu cinzento corriqueiro, pareciam no meio de um dia suavemente ensolarado; já ele trajava um cardigã preto alguns números maior, ficando ainda mais miudinho, com apenas as pontas dos dedos vendo a luz do dia pelo final das mangas.

A cada passo que dava, seus tênis estalavam pedrinhas e galhos que se prendiam no meio do pavimento irregular. Cada barulho novo fazia com que ele procurasse urgente a origem desse barulho como que vindo de longe, esquadrinhando a paisagem com olhos arregalados e muito negros.

Ele próprio não entendia porque estava ali, algo parecia puxá-lo com uma força intensa e inefável, e ele sucumbiu a ela e seguia o caminho com tensão crescendo a cada instante. Não suava por estar quase a zero grau centigrado, mas cada átomo do seu corpo vibrava em um tom urgente como que tentando alertar o todo do quão estranha era a situação.

De repente o caminho morreu. A via de pedras claras e cascalhos acabava em um bordo reto, dando de frente a uma árvore magnífica. Ele ficou fitando a árvore, com um espanto tão inexplicável quanto o motivo dele lá estar.

Era um frondoso carvalho, com um tronco incompreensivelmente largo e de uma cor tão densa e profunda que não parecia real, e com uma copa imensa, que se abria mais de metro para os lados, e vários metros acima, com folhas do verde mais pesado e lindo que ele já vira. A copa era densa e fechada, não deixava passar sequer um facho de luz, parecia composta de uma peça só.

Ele ficou olhando pra cima, diretamente para a copa que pairava não muito mais alto que ele, sentindo uma estranha familiaridade. Até que então a porção de folhagem logo acima e à frente dele agitou-se por um instante, e alguma coisa saiu.

Era um grandíssimo inseto, num tom de amarelo escuro terroso, com um tórax redondo, de onde partia um par de patas compridas e roliças, ainda que mais ou menos finas. Tinha dois olhos completamente negros, do tamanho de um punho, e mandíbulas laterais do tamanho de uma mão aberta, parecendo capazes de quebrar um osso se tivessem intenção. O resto do inseto estava ainda mergulhado nas folhas que se torciam ao redor do corpo, quase como se quisessem se tornar um só com a criatura.

Ele quedou-se imóvel mesmo após surgir tão impressionante figura. Não esprimiu um som, sequer moveu os braços, apenas ficou fitando fixamente a criatura que emergiu da copa do carvalho. Era possível ver o reflexo do inseto nos olhos dele, de tão intenso e fixo que era o olhar.

A visão de tal criatura trazia terror a qualquer pessoa que se deparasse com tamanha quiméra, mas ele continuava incólume e imperturbável ao olhá-lo. Ele via ternura no olhar do inseto.

"Casa... para mim?" disse ele do nada, ainda olhando em direção à copa da árvore.

O inseto apenas continuava retribuindo, silencioso e imóvel, o olhar.

Ele deu dois passos tímidos em direção ao tronco, para ficar mais abaixo do inseto.

"Me leve pra minha casa, minha casa nas árvores" falou, ao estender os braços pra cima, em direção à copa.

O inseto não fez um único som, apenas estendeu as duas patas compridas que até então pendiam suaves, e içou-o por debaixo dos braços, recolhendo-se lentamente para dentro da folhagem.

A folhagem estremeceu toda por um instante assim que os dois desapareceram no mar de folhas verde-escuro. Tudo continuou silencioso como estivera desde o início.

Apenas um vento gelado varreu o final da via, assoviando suave e remexendo as folhas do carvalho.