quinta-feira, 25 de março de 2010

Bruxa

Carmem corria desenfreadamente em meio ao matagal, sem ligar pros pés  descalços pisando brutamente as pedras encrustadas na lama batida, nem  com as ervas venenosas e galhos espinhosos que atacavam seus  calcanhares. Corria descalça e desabalada, com o coração quase na  garganta e os pulmões em brasa. Corria em fuga, corria com medo.

Em seu encalço, em meio ao arvoredo selvagem que odiava que por ele  corressem, vinham três homens com fúria nos olhos, dentes cerrados, e  armas nas mãos. Corriam protegidos até o pescoço com roupas pesadas de  caça na neve, com suas botas fazendo um ronco surdo ao triturar o solo  em passadas duras. De quando em quando um deles bradava: "Não deixem  que ela escape!".

Mas correr com medo leva mais longe e mais rápido, e Carmem conseguiu  perder-se do seu trio de caçadores, e encontrou um vilarejo. Era mais  de meia-noite, e todos dormiam.

Carmem começou a rondar por entre as casas mizeráveis e carcomidas pelo  tempo, em busca de onde pudesse se refugiar até que seu coração não  mais doesse de medo, e ela pudesse ir embora sem ter de olhar por sobre  o ombro, em busca dos homens furiosos com armas em punho.

Nisto sái um menininho, que ia usar o banheiro coletivo.

Os olhos de Carmem e do menino se cruzam, e fixam-se um no outro. Os do  menino se enchem de um medo sem explicação, os dela olham o menino da  cabeça aos pés, e suas pupilas se dilatam cobiçosamente.

"Não..." Carmem balbucia para si mesma pondo as mãos na cabeça. "Não  posso..."

"Não reprima suas vontades... Tu és teu próprio deus neste mundo de  alegorias"

Os olhos de Carmem se enchem de uma luz faminta de cobiça, e sua  expressão muda de um quase-pânico pra um deleite. Os olhos do menino  começam a escorrer tímidas lágrimas de medo. Ele quer correr, quer  gritar, mas seu corpo entregou-se ao pavor, e seus joelhos tremem.

Ninguém presenciou o bote que Carmem deu em cima da criança indefesa,  nem como ela abriu a nóz de seu tórax; mas em um instante ela tinha o  coração ensanguentado da criança sendo rasgado por seus dentes  amarelados.

"Boa noite, bruxa" disse uma voz embalsamada de rancor. Carmem, dita  bruxa, com os farrapos do coração pequenino nas mãos tintadas de rubro  de sangue, olha para onde veio a voz, encarando diretamente o cano  fosco de uma carabina.

sábado, 13 de março de 2010

Tortura

Eu tinha acabado de recobrar a consciência, provavelmente tomada por aquele cheiro de hospital que denunciava o éter esfregado nas minhas narinas. Tentei me mexer, mas minhas pernas estavam unidas com fita adesiva náutica, que eu seria incapaz de romper com a minha força vacilante, ainda mais meio chapado. Tudo que eu dava conta de mexer do corpo eram os braços, ainda que imobilizado do ombro ao cotovelo pela mesma infame fita náutica.

Tentei puxar folego pra gritar por alguem, mas assim que fui inspirar senti uma coisa áspera a fina me estrangular a garganta. Procurei tirar esse incomodo obstáculo, mas minhas unhas mal o roçaram; estava tão apertado que, durante meu torpor, seja lá o que fosse, cortara a carne do meu pescoço e se enterrado nele de maneira irremediável.

Olhei para os lados, tentando entender a situação, com o Pãnico enchendo o meu sangue de adrenalina, e cortando o efeito do narcótico. Passando os olhos pelo recinto, via o quarto de motel mais clichê, com tapetes felpudos, cama circular, e espelhos pra todos os lados.

E num desses espelhos, pude me encarar de frente.

Eu estava com a mesma fisionomia bagaceira de sempre, aquele estilo e aparência clássica de motoqueiro barra-pesada; exceto que desta vez estava com o pescoço levemente tinturado de sangue, vindo da ferida que a corda da forca onde eu estava fizera... Espera aí, forca?

Sim, forca, estava numa forca, mas por algum motivo eu não estava pendurado nela, sufocando até a morte. Reagindo involuntariamente tomado de pânico e esperanças de sobrevivencia, comecei a me debater.

A cada movimento espasmódico do meu corpo, se seguiu um som de algo grande raspando o chão. Meus olhos correram pela sala, procurando a fonte do som, até se depararem com o espelho.

Debaixo dos meus pés, me apoiando protegido do enforcamento, estava um grande bloco de gelo.

Eu não conseguia acreditar nos meus olhos, em me ver como ator de um teatro tão cruel, e ao mesmo tempo tão engenhoso. Uma técnica de tortura genial, fazer a pessoa ver seu irremediável fim chegar do ponto de vista de mil espelhos, esperando por horas pelo derretimento de um pedestal de gelo. Quase poético, o fim que algum maníaco elegeu como o meu.

Suspirei, os olhos ameaçando marejar de água, a respiração encurtada pela forca ficando ainda mais curta, resignei-me com o meu destino incomodo, com os braços tão limitados, resignei-me a fumar os vários cigarros que haviam no meu bolso sem remorso algum, agora sabendo que não seriam eles que me matariam.