terça-feira, 3 de agosto de 2010

Olhos tristes

[por mais que o personagem a quem o narrador se refere seja "eu", esse encontrinho de conto de fadas nunca existiu]

Após alguma insistência da parte de uma amiga, fui conhecer o rapazinho que ela queria tanto me apresentar. Devo dizer que de início, ao vê-lo de longe, senti uma pontinha de arrependimento: enquanto todas as outras pessoas eram bem nítidas em suas cores, esse rapazinho que trajava cores escuras era uma apariçãozinha fosca, quase uma sombra ou um vulto.

Mas ao chegar perto, fui esquadrinhando melhor a figura. A minha amiga nos apresentou, e enquanto ela falava, eu o lia, tentando entender o que via. Ele era atraente demais pra ser feio, mas não o suficiente pra se gabar de beleza, era um pouco pequeno, se bem que tudo em sua compleição era pequeno e magro. Mas o que me prendeu a atenção foram seus olhos.

Eram olhos de um castanho quase negro, uma cor corriqueira, mas havia algo neles que me deu trabalho pra explicar: seus olhos não pareciam muito pertencer a este mundo, pareciam não serem constituídos da mesma matéria de todo o resto. E seu brilho era diferente, não era aquele brilho cristalino de olhos alegres e bem lubrificados, o brilho daqueles olhos era frio e tristonho, como o brilho da prata.

Ao final da curtíssima apresentação dela, estendi-lhe a mão, e ele apertou-a de um modo curioso, amigável mas sem peso, e em seu rosto esboçou-se um sorriso enevoado.

Sugeri o cinema, ele aquiesceu, dei-lhe a preferência de escolher o filme.

"Vamos ver este, tenho ouvido falar bastante dele" ele disse vagamente. Dava pra perceber que ele não estava realmente interessado naquele filme, mas os demais em cartaz eram filmes de modinha adolescente que, pra minha sorte, ele também não gostava.

Compramos os ingressos e nos precipitamos pra dentro da sala; ou melhor, ele nos precipitou pra sala. Ao que me pareceu, ele não estava se sentindo nem um pouco bem no meio a multidão.

Começou o filme, foi bastante silencioso, tirando comentários pontuais dele. Gostei um pouco de seu sarcasmo, apesar dele ser bastante confuso e, de certo modo, triste. Triste demais pro tom do filme, um espalhafatoso Blockbuster de ação cheio de figurões de Hollywood.

Houve um momento de silêncio pesado vindo do nada, como se de repente a coisa tivesse perdido a graça. Nesse instante virei-me e beijei-o, e ele acompanhou meu movimento. Seus beijos tinham gosto de saudade.

Tarde da noite, estávamos só nós dois. Até ali ele era silencioso, apenas a respiração mudara, ficando pesada e ofegante, com o seu diafragma prensado sobre o peso quente que seus braços envolviam e mãos desbravavam. Eu encarava de frente aqueles olhos tristes, que me pareciam ainda mais etéreos sem os óculos de grau que ele usava torto sobre o nariz.

Ele dormira ali, meio apoiado na minha lateral, os seus olhos pareciam tristes mesmo fechados. Não parecia uma posição confortável de se dormir, a que ele estava, então puxei-o para desembaraçá-lo do emaranhado em que ele se pusera; nesse movimento, senti os batimentos de seu coração sob minha mão. Até nisso ele era diferente das centenas de corações que eu auscultara no trabalho: o dele, em vez de bater, parecia de algum modo soluçar, como que num choro ressentido.

Acordei na manhã seguinte, estava sozinho. Achei na mesinha da cabeceira um bilhete escrito por ele, com as frases cortadas, puladas pra linha seguinte, parecendo um poema de métrica estranha. Tinha seu número escrito numa caligrafia sofrível. Acho que vou ligar, e tentar entender mais uma vez aqueles olhos tristes feitos de vapor.