terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Maresia

Como se não houvesse mais nada para perder em sua vida, seu amante lhe escapara dos dedos como fumaça, e a deixara totalmente sozinha no mundo.O modo como as Omoplatas dele se moviam debaixo da mescla de algodão e poliéster no seu calmo passo para longe foi talvez um pouco demais para seus nervos.

Ela se via agora no meio de um mar de xícaras de café abandonadas pelo meio, com as bordas pintadas pelo seu batom borrado e salpicadas com a cinzas da profusão de cigarros vagabundos que ela fumara para diminuir o passo sincopado que a cafeína impunha ao seu coração.

Olhou pela janela meio encoberta pela cortina: chovia torrencialmente, e ela achou isso muito conveniente para a situação. Nada combina mais com a completa desolação de quem nada mais tem do que a chuva lavando tudo para longe, além do mais ela gostava do ar úmido. Cheirou seus lençóis, sentiu cheiro de maresia, para ela parecia cheiro de saudade. Saudade que os relâmpagos lá fora entrecortavam com seu clarão de quando em vez, a única claridade que ela vira em dias e que refulgira no mar de mais de cem xícaras de China branca que se espalhavam por todo o quarto, tal qual um campo de tulipas.

Ela continuou segurando o lençol cobrindo o nariz, bem rente aos olhos, as unhas azul-português descascadas constrastando ao tom de cinza do tecido envelhecido. Chorar? pra chorar tem de se sentir algo, e ela tinha a certeza de que quer que ela tivesse dentro dela estava esturricado e retorcido; apenas continuou aspirando o cheiro de brisa e alga marinha que misteriosamente apareceu em sua cama.

"Ele velejava" ela lembrou, e o mar dentro dela finalmente gotejou. Ela queria que ele navegasse seu vasto oceano, mas ele preferia o Pacífico Sul, e ela ficou perdida entre as vagas que rebentavam dentro dela e o lago plácido das xícaras que a cercava.

E deitou-se, deixou-se afogar pelos lençóis marinhos que a cercavam, uma xícara que estava aos seus pés deslizou e estourou no chão, mas ninguém a ouviu - reboara um trovão lá fora - ninguém a ouviria também, entre as vagas de um Oceano salgado que começara a irromper.