quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Lírio

A visão da minha janela era sempre cinza, tudo o que eu via era a cidade industrial decadente onde eu vivia, seus telhados cinzentos de amianto cobretos de fuligem escura, as casas encardidas, o asfalto irregular e esburacado, e as pessoas vestindo roupas escuras e puídas, de longas mangas pra suportar o frio glacial do vento que soprava constantemente, aumentando a sensação de desolação das ruas maltrapilhas. Mas ainda assim, por algum motivo, abrí-la e espiar o mundo através dela era a primeira coisa que eu fazia ao acordar, só depois indo comer o frugal desjejum que me serviam no pensionato.

Mas um dia, aconteceu de eu abrir a minha janela, e finalmente encontrar alguma cor entre o céu de nuvens de chumbo e a cidade de fuligem. Num lugar onde até as árvores eram enegrecidas e desfolhadas, nasceu um lírio no beiral de minha janela.

Me faltaram palavras pra exprimir o espanto que tive ao ver tão delicada flor nascer, desviando a rota mecânica e automática que meus olhos percorriam pela floresta de telhados de carvão. Minha primeira reação foi de pura descrença, eu duvidava que algo tão belo e delicado teria nascido em meio aos tijolos fúnebres que compunham a parede, esfreguei os olhos com os punhos pra ter certeza de que não era uma ilusão ou um sonho, e belisquei meu braço pra ter ainda mais certeza.

Mas ele era mais que real, e lá estava, firme, porém delicado.

Longas horas passei admirando-o quando o descobri, até esqueci de descer e tomar o desjejum magro de todo dia. Estava absorto em seus mistérios, queria entender porque ele foi nascer logo na lúgubre cidadela onde eu vivia, quando havia tantos prados ensolarados, e florestas cheias de viço, queria entender como ele reuniu forças pra nascer em meio à densa atmosfera de tristeza e morte que pairava sobre nossas cabeças. Mas o que realmente me intrigava eram suas pétalas.

Elas eram dum branco que jamais tinha visto naquele ambiente poluído, que ao caminhar pro miolo, tornava-se um amarelo intenso, levemente sarapintado de minúsculas sardas castanhas. Mas não era apenas a vivacidade das cores em meio ao mundo tão apagado, mas sim a sensação visual como um todo delas... elas pareciam como que desfocadas, ou envoltas numa aura, quase translúcidas, dependendo do olhar dado à elas. Cheguei a achar que eram de cera, mas jamais toquei-as pra tirar a dúvida; mas meu coração dizia que eram feitas do mesmo material dos sonhos.

Foram dez dias passando as manhãs e o anoitecer contemplando o lírio que nascera no beiral, todo o meu tempo livre era gasto meditando sobre as suas pétalas balançando suaves ao sabor do vento, todas as minhas palavras foram silenciadas pacificamente por sua presença. Tudo o que eu ansiava se direcionava à ele, e se encerrava nele. Poderia até dizer que me apaixonara pelo singelo lírio, pelo meu lírio.

Mas um dia, acordei e avidamente abri a janela para encontrar-me com ele, mas tudo com que me deparei foram seus restos mortais. As pétalas murchas e marrons, o talo acinzentado e mole, a única folha que havia no talo havia sumido. A atmosfera opressora da cidade finalmente fez sucumbir meu único afeto.

Anos se passaram desde que meu lírio se foi, deixando uma inquietude em meu coração; mas ainda abro a janela toda manhã, e rondo a cidade com os olhos secos de quem perdeu a capacidade de chorar mágoas ou felicidades, na esperança de um dia re-encontrar aquela minúscula fagulha de vida em meio à um lugarejo perdido no esquecimento.