terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Saudade

Eles dois - Luiza e Marcos, amigos de anos e anos, quando a coisa começa a esfriar e a intimidade borra as linhas que individualizam um ao outro - estavam num café qualquer, sem nome, tomando cada um uma xícara fumegante. Faziam-no ao menos uma vez por mês, para garantir que a rotina corrida de dois "adultos educados assalariados com vidas complicadas pra lidar" não os afastasse completamente. Luiza tomava a sua lentamente e meio desajeitada - não queria borrar seu batom carmim vivo contra o branco reluzente da xícara - e olhava para Marcos intrigada. Ele tomava sua xícara cabisbaixo, silencioso, acinzentado; remexia o pouco café que havia pingado no pires, tentando desenhar com ele.

"Aconteceu alguma coisa?" perguntou Luiza, após um silêncio pontuado por um pequeno grunhido saido de sua boca pequenina de lábios em brasa, que estavam retorcidos numa análise do que ela via alí. Olhava para ele por cima dos óculos pequeninos e ovalados que corrigiam sua vista e diminuiam seus amplos olhos cor de céu nublado.

"Lembra de quando fomos para Curitiba, e visitamos os sebos da República Argentina?" disse, um olho nela, um olho no garabato que fazia no pires.

"Claro que lembro!" ela disse, surpresa por trazer uma memória tão específica assim, do nada. "lembro que gastamos até o nosso último centavo comprando livros e cds. você completou sua coleção do Oasis, eu te comprei um dos cds do Arctic Monkeys" ela suspirou. "Era inverno, e tinha uma araucária soltando pinhas aos montes na vista da nossa janela".

"Então, ontem tomei meu dia e comecei a mexer na minha coleção de cds, e achei aquele cd dos 'macacos'. Pus pra tocar, e me embalei a ver as minhas coisas". Um gole profundo, acompanhado do som sissiante de esvaziar os pulmões com um peso no peito "Achei tanta coisa que a gente trocou esse tempo todo..."

"E?" havia curiosidade e confusão olhando por trás dos pequenos óculos ovalados, que preferiam encará-lo que examinar as cunhas cor de sangue impressas contra a xícara.

"E hoje acordei sentindo uma dessas nostalgias que envolvem a pessoa como um cobertor de vento gelado, como aquele Minuano que a gente pegou na última noite em Curitiba". Ele levantou ambos os olhos cor de terra preta, e ela viu neles o brilho peculiar dos olhos marejados de água. "Quantos anos rolaram desde que nos conhecemos?".

"Fazem quase vinte anos, a gente se encontrou pela primeira vez no colégio ainda" Luiza olhou no fundo daqueles olhos que cintilavam reflexos das lâmpadas fluorescentes. Em seu peito, ela sentia esborrar a mais quente e avassaladora ternura que um humano podia sentir pelo outro.

"E a gente trocava bilhetinhos por debaixo da porta, pelo corredor" Ela assentiu silente, com um aceno de cabeça. Ele tirou do bolso um papel branco com pautas cor-de-rosa, muito roto e amassado, que parecia ter estado à mercê do esquecimento por anos a fio, e passou-o de mão cheia para a mão dela.

Ela logo reconheceu nele a sua caligrafia de colegial. Era senão o primeiro bilhete que ela tinha deixado para ele, onde se lia "nunca vou me perdoar se deixar você escapar de mim".

Levantou o olhar do bilhete, e encararam profundamente um ao outro, as lágrimas irrompendo silentes em meio ao abraço que se fazia entre os dois.