segunda-feira, 27 de abril de 2009

Um Sorriso Ao Vidraceiro

Era uma manhã de domingo tórrida, mas mesmo assim Agatha estava profundamente agasalhada. não porque realmente sentisse frio, mas porque tinha pudores com seu corpo. Não que fosse casta, religiosa, ou algo do gênero, mas porque sua pele estava rajada de vergões quase negros. Socos, cacetadas, cinturadas... tudo que estivesse ao seu alcance era ferramenta ao seu marido nesse ritual pontual de flagelação.

As pessoas olhavam curiosas para Agatha, com roupas pesadas num dia quente, e a poucos quarteirões da praia. Uma verdadeira fortaleza de pano em meio a um mar de sungas, asa-deltas e fios-dentais. E chorava. Não de dor, ou de humilhação, mas de raiva.

Tudo começara a seis meses, no aniversário de um ano de casamento dela. o marido sempre foi um homem tempestivo e instável, mas a tratava como uma rosa delicada. Podia ser a criatura mais irracional e bruta com o mundo, mas era um cuidado especial, quase sufocante, para com sua esposa. Até que ele entrou no emprego novo...

Uma alta companhia o chamou para ser o analista de riscos nos investimentos, uma verdadeira revolução na vida dele, que não tinha conseguido muito mais que consultorias esporádicas com empresas de porte menor, e muitas vezes que não pagavam. Começou a frequentar as reuniões dos grandes figurões engravatados, que terminavam em coffe breaks luxuosos, com uísque, charutos Churchill e conversas acaloradas com os soberbos e notáveis cabeças da companhia.

O dia fatídico chegou após uma reunião, onde após dezenas de planilhas apresentadas, gráficos destrinchados e a garantia de milhões de dólares em lucros, foi quase que ovacionado pelos presentes, e carregado em júbilo e vitória pelos MBAs até um bar próximo, para um drinque, ou dois... ou dez. No meio de uma dessas conversas truncadas, o cabeça do grupo começa a falar da vida íntima,da casa, da "patroa", e de "estapear a coroa". Tudo com um ar de orgulho, como se defendesse uma tese... Aos ouvido do marido de Agatha, de origem humilde, as palavras de um homem de sucesso como ele pareciam uma lei... e após o expediente, rumou para casa decidido em torná-las realidade.

A carne macia e tez lisa de Agatha reagindo violentamente com os dedos dele deram gosto ao homem que antes a tratava como uma jóia, e o gosto se tornou hábito...

Ao evocar tais lembranças, Agatha prorrompe em lágrimas, e dispara ao caminho de casa, trombando nas pessoas, que não pareciam dar bola para o choro dela, não notavam que nela ameaçava não mais bater o éter da vida... o único que esboçou reação à passagem desconsolada dela foi um maltrapilho, sentado no meio fio, com uma garrafa de destilado envolta num saco de pão, que olhou para o rosto dela com seus olhos baços e disse, em tom de ordem. "um sorriso ao vidraceiro".

Agatha olhou-o atônita, emergindo da profusão de lágrimas, sem entender a mensagem... ao menos ele a distraiu do seu choro dolorido, e acalmou seu passo em direção ao ninho de sofrimentos, onde passaria por mais vexação.

Encontra o marido desmontado na cadeira, roto, suado. tinha ido trabalhar na véspera e recém voltara para casa. fedia a álcool e fumaça de tabaco; e quando a viu, abriu um sorriso sádico. Ela apressa o passo para passar por ele, mas ele a segue, e a derruba na cama do casal, crispando os punhos. Olhando-a quase de frente,segurando os pés agitados dela com os joelhos, inicia o flagelo.

"Não há escapatória?" pensou Agatha, enquanto os nós dos dedos de seu marido fustigavam-lhe o queixo, "isso será o que sempre me acompanhará?". Seus olhos giravam nas órbitas, quando de repente, as palavras do mendigo pularam em sua memória... "um sorriso ao vidraceiro", e ela abriu os olhos timidamente, ao sentir que ataque cessara.

Não havia cessado, mas um momento de alento se criara enquanto seu marido, envolto em um halo de luz cegante, tirava o cinto. Agatha espreme os olhos, cegada pela luz da janela, e continua com a fala do mendigo na cabeça... "o vidraceiro..." pensou, ao sentir os pés livres do aperto do marido, que travava uma batalha com o cinto enroscado, "o vidraceiro" ecoou em seus ouvidos quando se os meio sentada na cama...

"o vidraceiro!" pensou quando calcou os pés no peito do marido, e o empurrou pela larga janela com vista ao mar, espatifando o vidro com o impacto, e alçando o algoz à um vôo de despedida.

Um comentário:

CAMILA de Araujo disse...

interessante esse texto!

www.conto-um-conto.blogspot.com