terça-feira, 21 de abril de 2009

A Manhã do Arlequim

Arlequim era o espírito belo e vivo dos bailes, era a fagulha que acendia a chama da alegria e vivacidade da noite e das festas. Enquanto o Pierrot era o espírito melancólico e poético que revestia a atmosfera das festas com o romantismo de outrora, e com a suave tristeza que sempre permeia os que vêem um baile acabar, o Arlequim era a fagulha que mantinha as pessoas buscando a energia e vibração luminosa da música, que mesmo embebida pelo lirismo delicado do Pierrot, tinha melodia e ritmo fortes do Arlequim.

Mas mesmo assim, o Arlequim era melancolias infindas por dentro...

Arlequim, sempre com seus sorrisos brilhosos de verniz, as mãos quentes e fagueiras a comandar donzelas na dança, os pés ligeiros e olhos despertos para a agitação nos salões; guardava dentro de si uma melodia soturna que lhe toldava de nuvens de chumbo o coração que mentia felicidades aos convivas dos bailes. Por mais que fosse o Pierrot que entoasse suas desventuras de amor pela colombina, que por ele não tinha nada mais que um afeto distante e raso, era o Arlequim que voltava acompanhado tão somente da garra que lhe apertava o peito.

Mas a mentira, essa sim era grande amiga do Arlequim! Ela permitiu que arlequim continuasse a distribuir sorrisos de porcelana fria e a fazer mesuras ocas para os passantes, por mais que o seu coração ganisse ressequido de agruras. Foi ela que o permitiu tocar a vida de papel que ele levava. Pierrot podia ler Schopenhauer, os pessimistas, sofrer do Mal-do-século, ter uma lágrima perene pintada na bochecha por sua musa indiferente, mas era Arlequim que regava suas noites insones em álcool e em ganidos de uma dor indelével que residia além de suas carnes. Era o Arlequim que sonhava com um alento que cada dia parecia mais longínquo de chegar.

Mesmo assim, Arlequim continuava com seu papel de mesuras e sorrisos, vivendo um teatro com final incerto, mas trágico, e enredo encantador, mas falso e repetitivo.

Então, numa bela manhã de julho, uma brisa fagueira varria as cidades, o sol afagava com seus raios tépidos as calçadas e telhados, e um sorriso assumiu um ar diferente...

Um par de lábios acostumados a prostrar-se em sorrisos de cera, gélidos e calculados, moldou-se frouxamente num sorriso abominável, mas ao mesmo tempo relaxado. As maçãs desse rosto sempre altas e brancas, enrejilhavam-se frouxas, e os olhos sempre agudos, mas de uma expressão vazia, agora estavam baços e úmidos. Todo o conjunto pendia para um lado sobre ombros de pouco caso, de braços pendentes, que panejavam molemente ao lado do tronco roliço e frio. Frio? Sim, ele estava regelado naquela manhã, e pendia de modo momentaneamente grotesco, mas que parecia exalar um alívio... Arlequim agora com certeza tinha o peito leve, e o sono dos justos.

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