sábado, 16 de maio de 2009

A Refeição de Deus

A noite estava tão escura que sequer a fosforescência do visor do relógio sobrevivia à voracidade do tom negro de tudo, e eu seguia com um passo curto e rápido pelas ruas vazias e silenciosas, de concreto sujo e asfalto áspero. Além dos meus passos, ouvia-se apenas o pipilar muito distante de alguma ave noturna, uma coruja talvez, dando um ar de episódio de Scooby Doo à minha caminhada por aquelas ruas.

Meus olhos esquadrinhavam tudo à sua volta, preocupados, famintos, devorando cada detalhe que pudesse ser um alerta, meio paranóia, meio consciência: estava na cidade mais violenta do país, no país mais instável do planeta, e num planeta com tradições belicosas. Cada silvo, cada folha varrida pelo vento, cada vulto para mim era uma ameaça de disparar o coração.

Foi aí que, chegando à entrada do meu prédio, ouvi uma voz dirigindo-se a mim... “Tem fogo, moço?” dizia a voz em tom manso. No início, foi o suficiente para me deixar ofegante e com tremedeiras, mas depois de ver que era o guarda noturno da rua, as minhas mãos pararam de tremer o suficiente para apanhar um isqueiro no bolso da jeans, e acendendo o cigarro para o senhor semi-acordado com uniforme de segurança. A presença dele não me passou a sensação de tranqüilidade que eu esperava, mas era muito melhor que a tenebrosidade de encarar as amplas ruas desertas. Acendi um cigarro para mim mesmo e me virei para entrar no prédio, mas ele me chamou de novo.

Ele apenas perguntava se eu não me interessaria em uma partida curta de baralho, para matar o tempo. “Quem trabalha de vigia só faz contar o tempo, ajudar a matá-lo não seria ruim”, disse e lançou um olhar de quem pede um favor. Parte por piedade, parte por não ter motivos contundentes pra voltar pra casa, sentamos ambos numa mesinha de cimento da pequena praça de comércios na frente do bloco residencial.

Dadas as cartas para um jogo de poker normal, ele me olha fundo nos olhos, de um modo constrangedor, e de certo modo, perturbador, e pergunta num tom baixo, quase um sussurro cheio de proibição: “ta a fim de fazer o jogo ficar mais interessante?”.

Eu pensei em apostas, dinheiro pela vitória numa partida simples, no máximo um “poker por mico”, como nos tempos da faculdade, presenteando o vencedor com o direito de expor ao ridículo um dos derrotados... Mas ele apresentou um frasquinho opaco, com uma pedra porosa branca dentro.

“Isso é o que sobra dos sonhos de uma pessoa quando ela encontra com o Destino, face a face” disse com um tom de voz inaudível, como a de quem conta um segredo perigoso, “quem ganhar leva, isso dá a pessoa o poder de ver o que uma pessoa viveu e sonhou”. Indaguei qual seria a graça de ter tal prêmio, ele me censurou com os olhos, como se o prazer de tal prenda fosse algo óbvio e inigualável. “Para sentir na pele o que Deus sentiria”.

Senti um arrepio e um embrulho na boca do estômago, que atribuí às quatro vodkas que tinha tomado antes de rumar pra casa, e não a algum receio de ordem religiosa, já que, supostamente, Agnosticismo implica em não temência a um ser de probabilidade questionável. Aceitei a aposta, e abri a mão. Um par de reis, um valete, e umas cartas quaisquer, que descartei para pescar mais um valete e um rei. Full House, vitória sobre a trinca de noves do vigilante. Arrematei o frasquinho na mão e corri para o meu apartamento, como quem obteve algo maravilhoso, mas incrivelmente ilegal.

Olhei para o vidro com um olhar cheio de gulas, vendo a pedrinha branca deitada no fundo, tomando um espaço irrisório no receptáculo. Comecei a conjecturar sobre a pessoa que gerou a pedrinha, seu destino, o que lhe ocorrera para gerar aquela “Idea Sephirah”, como dizia em um game que eu jogava...

Mas a Idea Sephirah só surgia com a morte... Era isso que o vigilante dizia quando falava em “Destino”? Dúvidas começaram a me assomar, mas a atração pelo frasquinho e pela pedrinha sobrepujavam em parte os medos, e um desequilíbrio se formou em minha mente... O frasco me chamava, me consumia, e ao mesmo tempo me enchia de terror. Aquilo era o mais próximo de uma alma sólida.

Mas... Quem me provaria que aquilo era mesmo a alma de alguém? Quem me provaria que ela fora extraída de um humano? Meus dedos resvalaram na tampa, e as perguntas mudavam sutilmente... Quem poderia me culpar por ter a alma de alguém? Deus? E ele lá existe? E se ele existir, quem garante que é contra? Depois disso, foi o som de vidro raspando de leve, um baque surdo, e o arfar pesado do meu peito se silenciando noite adentro.

Um comentário:

Dois cubos de gelo disse...

Parabens pelo blog, você escreve muito bem ^^

vai lá http://doiscubosdegelo.blogspot.com/