sexta-feira, 9 de julho de 2010

Literato

O autor finalmente terminara de escrever sua primeira obra, seu romance germinal, após quarenta e cinco longos anos. Não conseguia acreditar que após quatro massacrantes décadas conseguira afinal expelir as seiscentas páginas da intricada trama.

Sentou-se na poltrona velha, em frente à mesinha onde apoiara a velha máquina de datilografia, e apanhou uma xícara de Orange Pekoe. Estava feliz como jamais estivera, ao completar uma missão que tomara quase sua vida inteira. Folheou o calhamaço e começou a se lembrar de quando começou a bater na máquina o que vinha na sua cabeça.

Lembrava de como surgiram a Caterina, o Padre Tartufo, como as tramas foram pedindo cada vez mais coadjuvantes e tempo, e seu peito foi estufando de orgulho ao pensar que saíra dele aquele pequeno universo.

Sacrifícios... começava a se lembrar deles: dos anos quase inteiros passados em claro, das olheiras que nunca mais sairiam, agora que tinha sessenta anos, de como as costa faziam barulhos assustadores quando se mexia bruscamente, e com certeza os dedos rígidos de fazer força nas teclas duras da máquina centenária. Mas também lembrava de como se isolara do mundo, e tão relutantemente saía de casa apenas pra pagar as contas e abastecer a geladeira. Perdera amigos pelo simples fato de sequer vê-los mais, perdera todos os agitos da mocidade por ter a alma sugada pela necessidade de fazer a família de Caterina nunca saber dos seus planos de poder. Mas talvez o que mais penasse foi Daniela tê-lo deixado, após incontáveis tentativas de mantê-lo neste mundo; ainda se lembrava das lágrimas descendo pelos cantos da boca chorosa dela ao se precipitar pela porta.

Mas para ele tudo valera a pena, afinal devotara cada sinapse e respiração pra fazê-lo o livro perfeito, reescrevendo cada parte até atingir a perfeição em forma e conteúdo. E agora, ele estava pronto.

E chorava...

As lágrimas desciam pelo rosto macilento de uma vida inteira de penúrias pela literatura, mas não era lágrimas de júbilo. Elas tinham um gosto amargo. O autor acabara de ver que tinha dado uma vida toda ao seu livro, e agora estava velho. Um velho de joelho duros, braços cansados e vista turva; não tinha mais razão para viver, pois só soubera viver pelo livro que escrevia. Começava a odiar ter chegado ao final, e se sentia cada momento mais desesperado.

No turbilhão desse desespero, correu até a porta da rua e trancou-a, fez o mesmo com cada uma das janelas e juntou todas as chaves na mão, atirando-as pela janela do basculante do banheiro. Pegou o texto pronto e rasgou-o em dois, atirando as folhas na fornalha que aquecia a água do banho, verificou os depositórios de chá e o balcão da cozinha e constatou que tinha Orange Pekoe, chá de jasmim e biscoitos amanteigados o suficiente para várias semanas. Então pegou mais um calhamaço de papel, uma fita de máquina de escrever, e voltou à primeira cena do livro, quando Caterina confidenciava ao Padre Tartufo que  se incomodava com a maneira displicente de como sua família levava a vida nobre que tinha.

Nenhum comentário: